O Sr. Alfredo me fez pensar que a vida passa… tão rápido… E que dias de Sr. Alfredo chegarão para mim também.

Estou estudando a possibilidade de publicar um livro, talvez tenha o título “Crônicas do Busão”. Não. Não ficou muito legal… Vou pensar melhor num título mais adequado para contar para vocês o que vi(vi) nas aventuras a bordo de um Mercedes Benz.

Ontem não teve dança do acotovelamento (para mim). Estava sem disposição para disputar um assento, queria mesmo era do alto dos meus 1,66m, observar as luzes e o movimento da cidade no trajeto.

O ônibus estava prestes a partir quando chegou o Sr. Alfredo, trôpego, esforçando-se para agarrar nos corrimãos da escada e vencer aquele longo e difícil obstáculo dos três degraus da porta. Prontamente alguém se levantou para lhe ceder o lugar, mas ele, estufando o peito e agradecendo cheio de orgulho de sua vitalidade, disse que estava cansado de andar de ônibus naquele dia e se recusou veementemente a aceitar o lugar. Ficou ali, parado ao meu lado, se equilibrando com uma sacolinha plástica na mão.

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Meus olhos de tandera já haviam registrado tudo. Estava muito frio e Sr. Alfredo estava com uma camisa fina de algodão, sem mangas e sem nenhum casaco. Usava um chapeuzinho charmoso, mas que eu entendi ser feminino, pois era cheio de detalhes floridos. Trajava roupas sociais e estava muito bem alinhado.

Ele me olhou e disse qualquer coisa sobre ter andando muito de ônibus naquele dia e algo sobre os freios do ônibus em uma determinada subida. Não conseguia ouvir direito, ele falava muito baixo. Quando eu disse: Como?, ele assentiu com a cabeça concordando e seguiu contando mais um pouco daquilo que eu não conseguia ouvir. Pronto! Éramos dois surdos em uma conversa de doido, ambos fingindo que entendíamos o que o outro dizia e dando sequência num diálogo inteligível (risos). Desisti de tentar entender quando percebi que ele estava feliz em me contar aquilo, seja lá o que fosse.

Em um determinado momento do trajeto ele me pediu: Puxa a cordinha pra mim? Respondi que alguém já havia feito isso e ele me olhou meio impaciente e repetiu: Puxa a cordinha pra mim? Sorri e apontei para o sinal luminoso na porta e disse, dessa vez mais alto: “Já está puxada”. Ele olhou na mesma direção e assentiu com a cabeça. Me olhou e começou a me contar algo sobre os freios do ônibus em uma determinada subida. E eu olhei para ele como se estivesse ouvindo aquilo pela primeira vez e ouvi paciente mais daquilo que ainda não conseguia compreender. Acho que o motorista não estava conseguindo subir em uma das suas viagens durante o dia, talvez seja isso.

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O ônibus parou no ponto e ele ficou na porta, conversando comigo. Eu apontei para as escadas e disse: O senhor não vai descer aqui? Ele lembrou assustado de que era o ponto e desceu um degrau, olhou para fora e disse: Ah não, esse não é o ponto, ainda está muito longe. A porta fechou e eu sorri, pensando se ele sabia onde deveria descer.

Próxima parada e lá se foi o Sr. Alfredo. Enquanto o ônibus se afastava eu pude observá-lo na calçada, olhando para cima e para baixo, claramente perdido. Acho que não era ali que ele queria descer. Será que ele sabia onde descer?

Aquele senhorzinho simpático e bem cuidado, que suponho, se chamasse Alfredo, porque ele tinha uma cara de Alfredo, tenho quase certeza de que esse era seu nome, se não for, agora para mim ele se chama Alfredo, lutava contra os sinais da velhice. Desde a subida sacrificante no ônibus, a recusa pelo assento, a narração repetitiva e inaudível do que lhe aconteceu durante o dia, a confusão para descer do ônibus, a falta de agasalho e o chapeuzinho feminino me davam a impressão de que habitava naquele corpo franzino um homem que lutava contra o tempo para continuar existindo em toda a sua autonomia.

Pensei em outros Srs. Alfredos… Até pensei do ponto de vista de cuidados com o idoso, sobre ele estar sozinho, mas ele não estava mal tratado. Na verdade ele deveria viver com alguém que estava lhe permitindo ser uma pessoa, ainda que estivesse em casa monitorando o relógio e pensando: “Onde o Alfredo se meteu?” Mas aposto que em casa alguém o esperava com o jantar pronto, que ele tinha um lugarzinho para pendurar seu chapéu e alguém que lhe desse uma bronca por sair sem um casaco.

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O Sr. Alfredo não me trouxe nenhuma lição grandiosa de vida… Só me fez observar nele a passagem do tempo que é implacável para todos nós. Despertou minha empatia sua vontade de seguir cuidando da própria vida, mesmo que eventualmente desembarque no ponto errado. Me fez pensar que a vida passa… tão rápido… E dias de Sr. Alfredo chegarão para mim também…

Acho que o Sr. Alfredo alcançou sua velhice com certa plenitude, que lhe deram o vigor e aquela aparência de velhinho feliz que eu vi ali ao meu lado. Eu me permiti pensar que ele deve ter filhos, talvez ainda uma esposa velhinha também, que ele tem amor, uma história de vida cheia de coisas boas de se ouvir e cheia de amor e troca, vontade de viver mais, viver o quanto a vida lhe permitir, sem soltar as rédeas da própria vida.

Eu deveria ter dado um abraço no Sr. Alfredo, talvez ido com ele até o portão de casa e me despedido dizendo para ele não sair mais sem um casaco numa noite fria como aquela. Acho que eu não diria nada sobre o chapeuzinho… É… Deixaria o Sr. Alfredo com aquela carinha feliz e seu chapeuzinho florido…

Luciana Marques
Fotografia: Camila Lima

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