E doía. Era dia de sentir dor e por isso escrevia, para sua alma não morrer de desamor

Fitou os olhos no espelho. Havia amanhecido acordada e enquanto apagava as marcas do cansaço do rosto, sentia a alma desabar e transbordar. “Você é uma fraude”, seus olhos diziam a si mesma, aqueles mesmos olhos marejados que não sabiam mais em que direção olhar.

Não conseguia mais recordar das palavras exatas da noite passada, mas sentia ainda mais viva e latejante a dor do punhal que lhe foi introduzido e retorcido no peito e ouvia “é para doer mesmo”.

Seus olhos lhe repetiam “você é uma fraude” e todo o seu corpo doía com a ideia que agora fazia de si mesma. Uma voz lá no fundo tentava lhe resgatar, recobrar seus sentidos e seu amor próprio, guerreava com seus eus que bradavam “nos deixem sentir” e aquela única fagulha de si mesma se esforçava para encher os pulmões de ar e apenas seguir adiante.

“Vai passar, sempre passa”, pensou. Se apoiou na veia dramática que tinha e na mania insistente em sofrer demasiadamente por coisas banais. Mas hoje não, hoje doía mesmo. Hoje sentiu vergonha de quem era, das decisões que tomou durante toda a sua vida. O peito doía, era como se todo o ar que não chegava aos seus pulmões estivesse inflando o peito, comprimindo seu coração.

Pensou em desistir de tudo. Tudo mesmo. Recomeçar, voltar atrás, seguir adiante, tudo agora parecia ser muito para a força com que começou esse dia cinza. Força nenhuma, havia uma impotência disfarçada nos sorrisos diplomáticos e no rosto maquiado.

Repetia mentalmente conceitos prontos sobre tudo ser coisa da mente, repetia as certezas que sentia sobre si mesma e que tudo quanto havia feito na vida foi sendo leal a si mesma. E sabia… ia passar. Mas a dor agora queimava o peito, as costas e o ar continuava a ser insuficiente.

Foi julgada e condenada por si mesma. Não porque houvesse cometido erros, ainda mais erros imperdoáveis. Mas porque sempre, por toda a vida, se culpava pela maneira como sua própria vida refletia na vida e nos sentimentos alheios. Estava ali, de novo, se culpando sem culpa e se não havia culpa, o que era então? Para que se sentir fraudulenta, impotente, covarde? “Ergue a cabeça e vai embora, que se dane”. Mas não havia aprendido a viver. Ainda era uma estúpida marionete que ao invés de bradar pelo seu espaço, permitia-se culpar.

Em tudo o que fazia na vida, botava o coração… Maldito, traidor, que fazia as coisas parecerem sempre tão bonitas para mais tarde bater tão descompassado que parecia não caber no peito. Bendito coração que empregava emoção num mundo cheio de razão e lhe dava os melhores sentimentos. Contraditórios sentimentos que criavam os sonhos mais bonitos e depois lhe acordava com uma água gelada na cara falando de realidades às vezes duras demais.

“É para doer mesmo”… Era difícil assimilar porque o amor lhe dizia isso. Que tipo de amor era esse que propositalmente fazia doer com o pretexto de estar fazendo o bem? Qual era o problema com esse amor para quem seu coração se despiu, e que agora colocava em dúvida tudo quanto havia feito, fazendo-a se sentir essa fraude? Havia feito mal ao amor e por isso ele lhe punia? Não entendia o que a vida queria dela, quanto mais precisaria demonstrar força e resistência quando tudo o que queria era poder apenas e tão somente, desabar?

Não era uma fraude. Mas era uma pessoa… das mais humanas. E o que quer que tenha vivido na estrada da vida era o que precisava para se construir. Depositava toda a sua lealdade aos sentimentos que vivia e como era amargo que isso fosse desacreditado. Lembrou da estátua de sal da Bíblia… tudo se perde quando a gente insiste em olhar para trás. Agora estava ali, com vergonha de ter despido a alma, com arranhões profundos, com a dor da dúvida que lhe foi imposta.

E doía. Era dia de sentir dor e por isso escrevia, para sua alma não morrer de desamor.

Luciana Marques

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